Seção Informativa

Robson Antonio Galvão da Silva [i]

 

O Direito Penal Econômico esteve no centro de uma polêmica doutrinária a respeito da expansão do Direito Penal. Paralelamente a esse transposto debate, é indubitável que as legislações de muitos países, inclusive a do Brasil, já há muito tempo, vinham tipificando penalmente condutas que lesionam, ou ameaçam de lesão, bens jurídicos de conteúdo econômico e outros com característica similares, de natureza não individual. Apesar disso, percebeu-se um paradoxo, pois a dogmática penal esteve tradicionalmente mais centrada no contexto da tutela de interesses subjetivos e aí estruturou-se. A crescente tensão entre essas perspectivas foi notada, especialmente, no período em que o âmbito de intervenção penal foi mais drasticamente ampliado[ii].

É assente que os delitos econômicos possuem como uma de suas principais características a elevada normatização, tratando-se de um âmbito institucionalizado complexo[iii]. Nessa seara, a técnica legislativa frequentemente se utiliza de elementos normativos, incluindo-se os de valoração global do fato, bem como a remissão à normativa extrapenal, sobretudo de cunho administrativo-regulamentador. A criminalização de condutas de perigo abstrato, as cláusulas de autorização e os denominados delitos de acumulação também são recorrentes. Essas figuras não eram, em absoluto, desconhecidas do Direito Penal, mas não estiveram no centro dos estudos dogmáticos que acabaram por consolidar os institutos de imputação das partes gerais constantes nos códigos penais que advêm do século passado, como é o caso do brasileiro.

Não bastasse, considerando que as condutas normalmente são praticadas no âmbito de uma empresa ou em favor de uma empresa, muitas vezes em nome de outro e com múltipla divisão de tarefas, sendo algumas delas desprovidas de qualquer ilicitude aparente ou mesmo lesividade (condutas axiologicamente neutras), vale mencionar ainda as questões atinentes à coautoria e participação, à posição de garantidor do empresário diante de alguns crimes comissivos por omissão, às figuras dos assessores especializados e do “compliance officer”, bem como à responsabilização penal da pessoa jurídica.

Diante desse cenário, existe certo consenso na doutrina ao se afirmar que o setor relativo ao Direito Penal Econômico possui determinadas peculiaridades que permitem individualizá-lo e que servem para o diferenciar de outros setores da parte especial. Apresenta, realmente, significativas diferenças dos delitos que tradicionalmente foram enquadrados no Direito Penal “clássico”, “primário”, “comum” ou “nuclear”[iv]. Consequentemente, ao se aplicar a tradicional teoria do crime aos delitos econômicos verificou-se a ocorrência de relevantes impactos. Por exemplo, na imputação objetiva, nota-se um enfraquecimento acentuado entre a conduta e o bem jurídico protegido pelo tipo, com todas as consequências daí decorrentes, para além do que era doutrinariamente aceito em matéria de crimes de perigo abstrato. Na imputação subjetiva, por sua vez, há repercussões na aferição do dolo e no tratamento do erro.

Diante desses e outros fatores, chegou-se a cogitar sobre uma verdadeira autonomia do Direito Penal Econômico[v]. Ainda, foram propostos, de lege ferenda, novos princípios jurídico-penais e critérios de imputação diversos dos tradicionais. Apesar disso, os delitos econômicos permanecem sujeitos à regulação da parte geral do código penal brasileiro, estando submetidos, portanto, aos mesmos princípios e sujeitos às mesmas regras de imputação dos demais delitos.

Isso não significa, no entanto, que os critérios tradicionais possam ser transladados acriticamente ao âmbito econômico, como advertem, já há tempos, MARTÍNEZ-BUJÁN[vi] e TIEDEMANN[vii], dentre outros, pois isso poderia dar espaço a significativas reduções de garantias. Na maior parte das situações, tem-se buscado acomodar as clássicas estruturas às características particulares dos delitos econômicos, mediante algumas matizações ou correções a institutos penais tradicionais, quando elas são utilizadas como instrumento para a interpretação de tais delitos[viii]. Algumas questões suscitadas no âmbito do Direito Penal Econômico têm levado a um perceptível desenvolvimento da teoria do crime em diferentes temas[ix].

Nessa linha, percebe-se que uma das principais funções que tem sido atribuída à teoria do delito na atualidade é precisamente a de obstar a tendência de fragmentação do Direito Penal[x]. Com efeito, a dogmática penal deve e necessita evoluir, fornecendo ao aplicador critérios e instrumentos que não podem mais ser os dos séculos passados como formas adequadas de tratar os problemas penais do século XXI. Porém, não se pode ceder à tentação de “dogmáticas alternativas”, que podem, a qualquer momento, serem transformadas em “alternativas à dogmática” incompatíveis com a regra do Estado de Direito e, como tal, democraticamente ilegítimas.

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[i] Mestre em Direito Econômico (PUC­–PR), doutorando em Direito Penal (Universidade da Coruña – Espanha).

[ii] A dogmática da parte geral, como observa ROXIN, não obedece aos mesmos princípios que a da parte especial, pois esta destina-se à proteção de bens jurídicos e contêm normas de conduta, enquanto que a parte geral se compõe especialmente de regras de validez e de imputação. In: ROXIN, Claus. Derecho Penal: Parte General: Fundamentos: La Estructura de la Teoría del Delito. Trad. da 2ª ed. alemã por Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Díaz y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 2006, p. 193.

[iii] Uma instituição, nas palavras de HAURIOU, é uma ideia de obra ou empresa que se realiza e permanece juridicamente num meio social. Para a realização dessa ideia se organiza um poder que cria os órgãos necessários para o funcionamento da instituição. Por outra parte, entre os membros do grupo social interessados na realização da ideia, produzem-se manifestações de comunhão que são dirigidas pelos órgãos do poder e reguladas por procedimentos. Vide: HAURIOU, Maurice. La théorie de l’institution et de la fondation. Aux sources du droit: le pouvoir, l’ordre et la liberté.  Paris, Cahiers de la Nouvelle Journée, n° 23, pp. 89–128, 1933, p. 96. Obviamente, na medida em que dada instituição seja mais complexa, haverá uma maior e mais detalhada regulamentação por procedimentos.

[iv] Conforme uma classificação tradicional, o Direito Penal “clássico”, “primário”, “comum”, “nuclear” ou “tradicional” estaria enfocado em comportamentos que representam ataques diretos aos direitos subjetivos individuais. Por outro lado, o Direito Penal “acessório”, “secundário”, “extravagante”, “especial” ou “moderno” enfatizaria a prevenção dos indeterminados perigos de violação daqueles direitos. Sobre o assunto, vide, por todos: DIAS, Jorge de Figueiredo. Para uma dogmática do direito penal secundário: Um contributo para a reforma do Direito Penal nos novos espaços de intervenção. In: PODVAL, Roberto (org.). Temas de Direito Penal Econômico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. pp. 11–63. Essa distinção necessita ser tomada com as devidas ressalvas, pois poderia levar a crer, equivocadamente, que o Direito Penal liberal, em algum momento, teria se limitado à tutela de direitos subjetivos individuais, o que não corresponde à realidade.

[v] Vide: WAGNER, Markus. Die Akzessorietat des Wirtschaftsstrafrechts: Zugleich ein Beitrag zu und Wesen des Wirtschaftsstrafrechts. C.F. Muller, 2016; QUINTERO OLIVARES, Gonzalo. Sobre los delitos económicos como subsistema penal. In: El derecho penal económico y empresarial ante los desafíos de la sociedad mundial del riesgo. Diretores J.R. Serrano-Piedecasas e E. Demetrio. Madrid: Colex, 2010.

[v] MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, Carlos. Imputación Subjetiva. In: Manuales de Formación Continuada. Madrid, n. 14, pp. 99–180, 2001. p. 100.

[vi] MARTÍNEZ-BUJÁN PÉREZ, Carlos. Imputación Subjetiva. In: Manuales de Formación Continuada. Madrid, n. 14, pp. 99–180, 2001. p. 100.

[vii] TIEDEMANN consigna que “Con cierta independencia de esta situación legal, el Derecho penal económico ofrece unas particularidades que se refieren a cuestiones de la Parte general ya sea desde el punto de vista de la técnica legislativa ya sea como consecuencia de que el Derecho penal económico abarca nuevos fenómenos sócio-económicos y llega por ello a soluciones novedosas en cuanto a su contenido”. In: TIEDEMANN, Klaus. Lecciones de Derecho Penal Económico: Comunitario, español, alemán. Barcelona: PPU, 1993. p. 157.

[viii] MARTÍNEZ-BUJÁN, Derecho Penal Económico y de la Empresa: Parte General, op. cit., 5ª ed. – p. 79.

[ix] Nesse sentido: “A importância actual do direito penal econômico mais se acentua devido ao facto, explicitamente aflorado no Colóquio, de ele se ter convertido num pólo de inovação e renovação do próprio direito penal parte geral. Bastará, por exemplo, ter presente que foi para dar resposta a exigências específicas do direito penal económico lato sensu foi que pela primeira vez se recorreu à bipartição das infrações em crimes e contra-ordenações; o mesmo vale para a problemática da punibilidade das pessoas colectivas; para certos aspectos da dogmática do erro, etc.” COSTA, José de Faria; ANDRADE, Manuel da Costa. Sobre a concepção e os princípios do Direito Penal Económico. In: Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários. v. 1. Coimbra: Coimbra Editora, 1998. p. 349.

[x]   Vide: GRECO, Luis. En Alemania, el finalismo está muerto. Entrevista concedida à Universidad Libre de Bogotá. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com/BancoConocimiento/Educacion-y-Cultura/en-alemania-el-finalismo-esta-muerto>. Acesso em: 13 mai. 2019.

 

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