Seção Informativa

O colegiado da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) anulou uma condenação em que provas foram produzidas depois do início do julgamento. Um dos diretores pediu novas diligências, mas quando o processo retornou ao plenário, outro julgador já havia sido exonerado com o término do mandato e não conseguiu analisar os novos fatos.

Processo Administrativo Sancionador RJ2013/8609 apurava suposto uso indevido de informação privilegiada (insider trading) por Fábio Feital de Carvalho, analista de comercialização e logística na função de gerente da Petrobras, em negociação de ações ordinárias da HRT Participações em Petróleo S/A.

Segundo a acusação formulada pela Superintendência de Relações com o Mercado e Intermediários (SMI), Carvalho comprou 4.700 ações da HRT, por R$ 22.889 mil, horas antes da divulgação de fato relevante que informava a assinatura de um Protocolo de Intenções para monetização do gás da Bacia do Solimões com a Petrobras e a TNK-Brasil Exploração e Produção de Óleo e Gás Natural. Após essa notícia, as ações se valorizaram 14,35%.

No dia seguinte, conforme apurou a SMI, o acusado vendeu todas as ações que comprou, obtendo uma vantagem econômica de R$1.786 mil com a operação, já que o capital estava valendo R$ 24.675 mil.

No julgamento de 16 de dezembro de 2016, o diretor relator do caso, Henrique Machado, acompanhou o entendimento da área técnica e votou pela condenação de Fábio Feital à multa de R$ 100 mil, sob o argumento de que, no cargo que ocupava dentro da Petrobras, ele detinha posse da informação que ainda não havia sido divulgada ao mercado. Isso foi confirmado pela própria companhia.

Além disso, entendeu Henrique Machado no julgamento, o fato de a revista Veja ter divulgado informações sobre a intenção do negócio no sábado anterior “não necessariamente quer dizer que a informação deixou de ser privilegiada”, pois os insiders “têm certeza daquilo que sabem e o mercado ainda está diante de especulações e incertezas”. Seu voto foi seguido pelo então diretor Roberto Tadeu e por Pablo Renteria, alcançando maioria pela condenação.

Naquela tarde, o diretor Gustavo Borba, quarto a votar pela ordem, pediu vista dos autos. Seis dias depois, ele invocou o art. 20 da deliberação CVM 538 para a “realização de diligências com o fim de obter a lista de todas as negociações com valores mobiliários realizadas pelo acusado na BM&FBovespa entre 01/01/2002 e 31/12/2012.

Quando o julgamento retornou ao plenário, em maio de 2017, Borba apresentou divergência e votou pela absolvição de Feital. Ele entendeu que o acusado detinha informações que já haviam sido divulgadas pela imprensa, tanto por jornais quanto por revistas. “O mercado tinha conhecimento daquilo que viria a ser divulgado”, votou Borba.

Além disso, entendeu o diretor, não havia atipicidade nas negociações de Feital com ações da HRT se comparadas com operações anteriores. “Pesa em favor do acusado o seu perfil de investimento. O modo de atuar, comprando em um dia e vendendo no dia seguinte, também estava dentro dos padrões do acusado, não se podendo daí extrair qualquer atipicidade no seu comportamento”, concluiu Borba, ao votar pela absolvição de Feital.

Na sequência, seu voto divergente foi seguido pelo então presidente da CVM, Leonardo Pereira, ao também entender que “não se comprovou, de maneira consistente e suficiente para uma eventual condenação, o conhecimento, por parte do acusado”, de uma informação relevante ainda não divulgada ao mercado.

Ao final, Feital foi condenado por 3 votos a 2. O problema, entendeu a defesa, foi que as provas produzidas após o início do julgamento não foram analisadas por todos os diretores, já que Roberto Tadeu, que havia votado pela condenação, já não estava mais na cadeira de diretor da CVM, pois seu mandato foi encerrado ao final de 2016.

Recurso

Em razão disso, o jurista Nelson Eizirik, advogado de Fábio Feital de Carvalho, invocou o art. 53 da Lei 9784/99, que trata do processo administrativo no âmbito da administração pública federal.

De acordo com o dispositivo acionado por Eizirik, o órgão julgador deve anular seus próprios atos “quando eivados de vício de legalidade, e pode revogá-los por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos”.

Segundo a defesa, após o pedido de vista feito por Gustavo Borba, “foram acostadas novas provas aos autos sendo que Fábio Feital não foi intimado a se manifestar sobre todas elas; e nem todos os diretores presentes na Sessão de 16.12.2016, notadamente o diretor Roberto Tadeu, cujo mandato encerrou-se em 31.12.2016, apreciaram as referidas provas”.

“Não se pode aceitar que apenas alguns diretores tenham examinado tais provas, sob pena de violação aos princípios constitucionais do contraditório e da ampla defesa”, afirmou Eizirik.

O recurso foi analisado durante reunião do colegiado ocorrida em 16 de janeiro de 2018. Na ocasião, o diretor relator do caso, Henrique Machado, votou para dar provimento ao recurso e anular o julgamento, ao entender que o julgamento que condenou Feital “padece de vício de legalidade insanável”.

“Trata-se de corolário do princípio do devido processo legal, que a devida apreciação de todas as provas pelo órgão julgador deve preceder sua decisão”, afirmou Machado em seu voto.

Segundo Henrique Machado, “verifica-se claramente que as novas provas incluídas no processo em decorrência de diligências determinadas pelo diretor Gustavo Borba e sobre as quais não houve intimação para manifestação específica do requerente restaram utilizadas como fundamento do voto-vista em benefício do acusado”.

Além disso, “tais provas, em conjunto com outros argumentos aduzidos pelo diretor, compuseram as razões de mérito para o seu voto pela absolvição”.

“Era imprescindível que [os diretores que já haviam votado] tivessem analisado os novos documentos e se manifestado expressamente sobre a manutenção, ou não, de seus votos à luz do novo conjunto probatório, destacadamente quando se constata que os votos proferidos na primeira sessão de julgamento e, portanto, com análise parcial das provas, foram determinantes para a condenação do requerente”, votou o relator.

Com a anulação, o caso será julgado novamente pelo colegiado da CVM. Segundo apurou o JOTA, a nova deliberação deve voltar à pauta em maio.

Novas provas

Toda a discussão do caso gira em torno de uma divergência jurídica: um diretor, que não seja o relator, pode pedir diligências depois de iniciado o julgamento, como fez Gustavo Borba?

No voto do recurso, o relator Henrique Machado afastou essa possibilidade. “A hipótese de novas provas serem juntadas aos autos de processo administrativo sancionador após o início do julgamento pelo colegiado não é prevista expressamente pelo Regimento Interno da CVM nem pela Deliberação CVM nº 538/2008 [que trata do rito de processo na autarquia]”, entendeu Machado.

“Não há sequer previsão de produção de provas por outro membro do colegiado diverso do diretor relator”, concluiu o relator em seu voto.

Nos bastidores, segundo o JOTA apurou, a cúpula da CVM entende que deve se manifestar para deixar essa possibilidade clara, seja para negar ou autorizar a produção de provas após o início do julgamento.

O próprio relator Henrique Machado, em seu voto, propõe que futura alteração da Deliberação CVM nº 538/2008 “contemple expressa previsão quanto à ordem de julgamento no colegiado e a produção de provas por outro membro do colegiado diverso do diretor relator, de modo a evitar a recorrência de casos da espécie”.

Advogados atuantes em processos administrativos sancionadores ouvidos pelo JOTA questionam se, para manter o princípio da colegialidade, Borba não deveria ter submetido o pedido primeiro para aprovação dos diretores para, então, produzir as provas

A pesquisadora Viviane Muller Prado, especialista em mercado de capitais e professora da FGV-SP, afirma que não vê problema no pedido de diligência por um outro diretor, mesmo que não esteja expresso no rito processual da autarquia.

“Mas, neste caso, entendo que se deve voltar a fase instrutória e, se forem colhidas provas robustas, reiniciar a fase do julgamento desde o início”, ponderou Viviane Muller. “Se assim não acontecer, alguns votos terão como base conjunto de provas e outros diretores decidirão com base em outras provas. Isto que não parece administração admissível.”

A advogada Renata Moritz, sócia do Eizirik Advogados, que também assina a defesa do processo, reconhece que não há previsão para o pedido de diligências após o início do julgamento, mas afirma que o diretor “tem que ter convicção plena do que está votando”.

“Se um dos diretores não está convicto que as provas são suficientes, é legítimo que providencie ou peça a quem de direito”, falou a advogada. Questionada, ela disse que isso vale tanto para absolver quanto para condenar o acusado. “Desde que seja do conhecimento do acusado e que ele possa se manifestar sobre as novas provas, não pode alegar nem cerceamento de defesa.”

Daniel Kalansky, sócio do Loria e Kalansky Advocacia, afirma que mesmo não estando previsto no regimento e na deliberação, não vê problemas em outro diretor pedir novas diligências. “Caso seja importante para o julgamento, e constatar que está faltando informações, o ideal é pedir mesmo”, disse.

O julgador da BM&FBovespa Supervisão de Mercados (BSM) Henrique Vergara, ex-procurador da CVM, avalia que a prova em processo administrativo e judicial é produzida em benefício de quem julga. “Se o julgador considera que a prova é insuficiente, existe sempre essa prerrogativa de solicitar diligências”, afirmou.

Ele considera, porém, que cabe ao colegiado deliberar sobre novas provas, e não uma decisão monocrática.

Fonte: Jota

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