Seção Informativa

co-autor: Danilo Tavares Paiva

O conteúdo do programa de compliance de uma empresa depende do tipo de atividade desenvolvida e da dimensão operacional da entidade, tomando como base a política de governança corporativa e a legislação aplicável.

Os elementos mais comuns em programas empresariais de conformidade são: identificação e gestão de riscos, códigos de conduta, delimitação clara e atribuição de competências aos funcionários e os sistemas de supervisão e controle, dos quais fazem parte os canais internos de denúncia.

A gestão de riscos consiste, basicamente, em um inventário dos focos de atenção presentes nas atividades da empresa, com o objetivo de adotar-se medidas para limitar a incidência desses riscos a níveis juridicamente aceitáveis. A limitação à marca de total extinção das fontes de riscos não pode ser exigida, porque, em última análise, isso representaria o fim da própria atividade econômica, cuja base é caracterizada por operações de risco.

Para que a gestão de riscos seja eficiente, os procedimentos de prevenção devem ser acompanhados e atualizados de forma contínua, a fim de introduzir-se adaptações sempre que necessário.

Assim, todo programa de compliance pressupõe a existência de sistemas de supervisão de conformidade das práticas corporativas. Uma das ferramentas de controle de maior destaque – e também de geração de polêmicas – são os canais internos de denúncias.

Criados com a finalidade de fomentar o engajamento dos funcionários na vigilância e de intensificar as chances de descobrimento de irregularidades, os canais de denúncia, se não implementados corretamente, poderiam gerar um ambiente de trabalho hostil, já que, a qualquer momento, um integrante da organização pode vir a ser delatado por seu colega.

Precisamente, os chamados sistemas de whistleblowing são canais de recebimento de informações, denúncias e confissões da prática de irregularidades, crimes e toda espécie de ilegalidade praticada dentro da organização empresarial. Trata-se de uma ferramenta cada vez mais comum nos programas de compliance, objetivando assistir o compliance officer no desempenho de suas tarefas de supervisão, prevenção e detecção de ilicitudes. Aquele que reporta a irregularidade é chamado de whistleblower.

A denominação whistleblower (whistle = apito; blow = sopro) é utilizada para fazer referência à pessoa que, ao tomar conhecimento de uma ilegalidade – como regra praticada em um contexto empresarial ou corporativo – informa o descumprimento da lei às autoridades competentes, em troca de proteções legais, para que estas possam 2 investigar, punir e prevenir ilícitos penais e extrapenais. A expressão, em verdade, é uma referência ao árbitro, cuja função diz respeito a coibir as jogadas ilegais praticadas pelos jogadores por meio do sopro do apito.

Nesse contexto, a figura do reportante surge nos países de tradição jurídica anglo-saxã, mais especificamente nos Estados Unidos, vinculado inicialmente à proteção de empregados do setor privado que denunciavam práticas ilícitas nos setores de saúde, segurança pública e direitos trabalhistas.

Vale registrar, à título de breve esclarecimento, que o whistleblower, adotado como termo técnico, não se confunde com o colaborador premiado. Com efeito, a delação acontece em uma investigação ou processo criminal onde, a grosso modo, o investigado recebe um “prêmio” na forma de imunidade ou sanção menor em troca de delatar seus próprios cúmplices. Nesta situação, o delator não é nenhum inocente. Podese dizer, inclusive, que ele é duplamente “culpado”. Na esfera legal, sua culpa no grupo criminoso é assumida. Na esfera moral, ele trai e dedura colegas infratores para resguardar interesses próprios.

A situação do whistleblower, pessoa que denuncia conduta imprópria numa empresa ou órgão público, não poderia ser mais diversa, tanto no estrato legal quanto moral. Em princípio, o whistleblower é inocente, é alguém que, sabendo de conduta irregular, a leva ao conhecimento do compliance officer ou à autoridade competente. Pode ser um funcionário ou pessoa externa: um fornecedor ou cliente.

Importante observar, ainda, que o empregado que exerce funções de controle, investigação ou delação está excluído do âmbito do conceito de whistleblower, ou seja, resta fora dessa classificação o profissional que cumpre obrigação vinculada a seu cargo de informar aos diretores da empresa que empregados da organização cometeram irregularidade, como, por exemplo, os compliance officers.

O canal de denúncia do whistleblower é considerado por especialistas de compliance como o mais eficaz para revelar condutas indevidas. Também, é considerado mais seguro aos interesses da pessoa jurídica, pois, ao acessar primeiro o conteúdo do reporte, a empresa terá melhor controle sobre os fatos e, consequentemente, poderá decidir com mais cuidado quanto à destinação da informação recebida; além disso, os esforços de conformidade da empresa constituiriam prova de uma política interna comprometida com a integridade e serviriam para habilitá-la aos benefícios legais no caso de eventual envolvimento com atos ilícitos.

Contudo, de nada adianta uma empresa ter esses canais se ninguém se sente à vontade para reportar, por temer os efeitos da denúncia.

Isso ocorre porque há uma percepção, baseada na realidade, de que reportar irregularidades provavelmente não levará à investigação e punição dos responsáveis e que, com certeza, resultará em represálias contra o reportante, que poderá perder o emprego, ser apontado como dedo-duro e ter seu nome “queimado” no mercado de trabalho, dificultando um novo emprego.

Inobstante, vale lembrar que, no setor privado, as empresas de grande porte estão habituadas com mecanismos de proteção aos funcionários que realizam reportes em 3 seus canais de denúncia internos. Políticas antirretaliação e efetiva proteção aos whistleblowers fazem parte da rotina de governança corporativa e de controles internos de empresas interessadas em prevenir, detectar e remediar condutas indevidas.

A seriedade das promessas de segurança ao reportante é medida com base no grau de comprometimento da alta administração com a cultura de legalidade dentro da empresa e com os incentivos dispensados para que o reporte do conhecimento de atos ilícitos aconteça. Destaca-se que somente a implantação de um sistema fundado no anonimato do reportante lhe garantiria segurança absoluta.

De outra parte, a criação de prêmios pelo engajamento com a conformidade e o oferecimento de recompensas pelo reporte que leve ao efetivo descobrimento e repressão a irregularidades é uma alternativa que a empresa pode levar em consideração. Porém, essa ferramenta pode gerar abusos e reportes falsos, colocando em dúvida o próprio sistema.

Diante desta dicotomia, convém expor como o assunto é tratado pelo direito comparado.

Na Inglaterra, além de canais de denúncia, há proteção legal contra represálias. Uma pessoa não pode ser demitida, por exemplo, por apontar condutas impróprias.

Nos Estados Unidos, a concepção é ampliada para o mercado de capitais com a edição do Securities and Exchange Act (1934), que cria a Comissão de Títulos e Valores Mobiliários (Securities and Exchange Comission – SEC), com a finalidade de fiscalizar, a partir de uma perspectiva externa à corporação (oversight), o mercado financeiro e prevenir fraudes fiscais [1].

Posteriormente, com a insuficiência das investigações realizadas pelos órgãos externos, inaugura-se uma nova forma de investigação e prevenção de ilícitos praticados em âmbito corporativo, com a edição do Sarbanes-Oxley Act (2002), que possibilita fiscalizações internas de fraudes fiscais (undersight), a partir dos próprios funcionários e colaboradores das empresas, que podem atuar como reportantes em troca de incentivos e proteções legais [2].

Nesse passo, foi promulgado, ainda, o Dodd-Frank Wall Street Reform and Consumer Protection Act (2010), cuja seção 922 dá origem ao pagamento de recompensas aos reportantes que fornecerem informações originais e detalhadas à SEC sobre violações legais que conduzam a ações repressivas que resultem em sanções monetárias acima de um milhão de dólares. A partir deste marco legal, quem reporta conduta irregular à SEC pode ser recompensado com prêmio de 10% a 30% do valor eventualmente recuperado. O ato também cria mecanismos de proteção aos whistleblowers contra retaliações ao assegurar que a SEC deve manter a confidencialidade dos reportantes e não revelar informações que possam, direta ou indiretamente, revelar a sua identidade.

Se, por um lado, o sistema de recompensa a reportantes pode remeter ao período do Velho Oeste norte-americano – cujas imagens mais comuns irrompidas no imaginário popular são a do saloon (bar típico da época em que os clientes da região 4 bebiam, jogavam cartas, se divertiam com mulheres e duelavam) e a dos clássicos caçadores de recompensas e pôsteres de criminosos procurados com a inscrição “Wanted: Dead or Alive” – por outro, revela-se especialmente efetivo na recuperação de ativos desviados.

De fato, o Departamento de Justiça americano recentemente anunciou que pagou mais de 392 milhões de dólares em recompensas a whistleblowers no ano-fiscal de 2017. O pagamento do valor astronômico somente foi possível em razão da recuperação de mais de 3.7 bilhões de dólares em ações judiciais iniciadas a partir de informações fornecidas por whistleblowers.

Além disso, uma análise do cenário jurídico mundial evidencia que, nas últimas décadas, a prática do whistleblowing tem sido difundida para diversos países da Europa, Ásia e América, servindo como instrumento de investigação e prevenção na esfera criminal, inclusive em relação ao crime de corrupção [3].

E a difusão no cenário transnacional se reflete em tratados internacionais que conferem legitimidade a essa prática, como se pode verificar do artigo III.1 e III.8 da Convenção Interamericana Contra a Corrupção, ratificada no Brasil por força do Decreto 4.410/2002, e em legislações internas, como a Lei 12.846/13, chamada de Lei Anticorrupção.

Pelo contexto exposto, é possível verificar que as autoridades públicas brasileiras têm atribuído papéis cada vez mais relevantes às empresas e aos cidadãos na aplicação e no cumprimento das regras que visam ao combate à corrupção. Este movimento é considerado pela comunidade internacional como uma questão de engajamento privado com a execução de políticas públicas (conceito conhecido como public enforcement).

Tanto é assim que, em 10/01/2018, entrou em vigor no Brasil a Lei 13.680/18, dispondo sobre “o serviço telefônico de recebimento de denúncias e sobre recompensa por informações que auxiliem nas investigações policiais”.

Em seu artigo 4º, §1º, é previsto que a “União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, no âmbito de suas competências, poderão estabelecer formas de recompensa pelo oferecimento de informações que sejam úteis para a prevenção, a repressão ou a apuração de crimes ou ilícitos administrativos” e que “entre as recompensas a serem estabelecidas, poderá ser instituído o pagamento de valores em espécie”.

A referida lei parte da premissa segundo a qual, na modernidade, o Estado não possui estrutura suficiente para fiscalizar, investigar e prevenir os diversos ilícitos decorrentes da complexidade havida nas relações sociais, assumindo-se a necessidade de que, em algum limite, os próprios indivíduos devem tomar para si parcela desse dever investigativo e preventivo, assegurando, para tanto, o sigilo dos dados do reportante (art. 3º).

Não são desconhecidos os dilemas éticos levantados em todo o mundo sobre da utilização dessa prática [10], porém a partir do momento em que há uma pulverização do instituto do whistleblowing no âmbito do direito interno de vários países, 5 bem como a sua previsão em tratados e convenções internacionais, não se pode fechar os olhos para essa realidade, sendo necessário um debate profundo sobre o assunto.

Com base na experiência dos países que adotam a prática de recompensa aos whistleblowers, é possível delimitar os mais importantes prós e contras deste sistema.

A favor da sua implementação, advoga a tese de que o sistema de recompensa encoraja as pessoas a tomarem posição contra ilícitos e os programas de incentivo levariam à maior efetividade da atividade repressiva estatal (segundo a SEC, sem as informações obtidas por meio de programas de incentivo à whistleblowers, seria muito difícil detectar fraudes complexas).

Em sentido contrário, tem-se que as exigências para remuneração dos whistleblowers são tão restritivas a ponto de premiar somente uma pequena parcela de reportantes, cujas informações efetivamente conduzam à ação repressiva bem-sucedida. Além disso, o incentivo financeiro pode resultar em reportes maliciosos ou falsos, comunicados oportunamente e que poderiam causar danos a partes inocentes, especialmente se considerada a realidade brasileira (norteada pelos “princípios” de que “manda quem pode, obedece quem tem juízo” e “levar vantagem em tudo”). Nesse diapasão, a questão que exsurge premente é se o incentivo pecuniário aos reportes comunicados por whistleblowers, notadamente aqueles realizados anonimamente, seria capaz de gerar efeitos colaterais como um novo comércio penal [4].

No setor privado, há ainda outro viés duvidoso. O incentivo financeiro por parte do governo enfraquece os mecanismos internos de compliance, frustrando sua habilidade em resolver os problemas internamente, já que os reportantes poderiam levar a comunicação diretamente às autoridades públicas.

Destarte, a discussão que ora se apresente é necessária tanto para o fortalecimento e amadurecimento da figura do whistleblower quanto para possibilitar melhor aplicabilidade e efetividade de sua atuação no Brasil, onde a ferramenta ainda é novidade e a cultura sobre a corrupção é peculiar.

Outro ponto que merece ser amplamente debatido diz respeito à segurança jurídica do instituto, seja para viabilizar a proteção e tutela dos direitos e garantias fundamentais do reportante e do reportado (direito à intimidade, à privacidade etc.), seja para que a ferramenta possa ser corretamente aplicada pelo Poder Judiciário, de modo a evitar a indevida responsabilização cível, administrativa e criminal de pessoas físicas e jurídicas ou mesmo a decretação de prisões cautelares como “resposta” a anseios sociais, frutos de uma atuação desmedida e irresponsável de caçadores de recompensas.

Referências: [1] WESTMAN, Daniel P. The Significance of the Sarbanes-Oxley Whistleblower Provisions. The Labor Lawyer. v. 21, n. 2 (Fall. 2005), p. 141.

[2] Idem, ibidem, p. 141-142: “(…) Sarbanes-Oxley garante que indivíduos em nível operacional, que estão intimamente envolvidos nos negócios da companhia, tenham a faculdade de informar terceiros alheios à empresa quando virem fraudes financeiras.” Trad. de: “(…) Sarbanes-Oxley ensures that individuals at the operational level who are 6 intimately involved in a company’s business have the ability to inform outsiders when they see financial fraud.”.

[3] Sobre as diversas experiências do uso da whistleblowing como instrumento de prevenção à corrupção, cf.: SCHULTZ, David. HARUTYUNYAN, Khachik. Combating corruption: The development of whistleblowing laws in the United States, Europe, and Armenia. International Comparative Jurisprudence. v. 1, I. 1 (dec. 2005), p. 87-97; DYCK, Alexander; MORSE, Adair; ZINGALES, Luigi. Who Blows the Whistle on corporate Fraud? The Journal of Finance. v. 65, n. 6 (dec. 2010), p. 2213-2253; GAULT, David Arellano; MEDINA, Alejandra; RODRÍGUEZ, Roberto. Instrumentar una política de informantes internos ‘(whistleblowers)’: mecanismo viable en México para atacar la corrupción? Foro Internacional. v. 52, n. 1 (enero-marzo, 2012), p. 56 e ss.

[4] MORAES DA ROSA, Alexandre. Para entender a Delação Premiada pela Teoria dos Jogos. Florianópolis: EModara; Emais, 2018.

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