Seção Informativa

O Ministério Público Federal, em 23/08/2018, ofereceu denúncia contra o atual reitor da UFSC, na época dos fatos reitor pro tempore, Ubaldo Cesar Balthazar, e de seu chefe de gabinete, Áureo Mafra de Moraes, por, supostamente, terem comedito o delito de injúria em face da delegada da Polícia Federal que conduziu a operação ouvidos moucos.

Relembrando, tal investigação era destinada a apurar desvio de recursos da universidade. O então reitor Cancellier, antes de ter sido ouvido no inquérito, sob quem não pesava a suspeita de desvio, foi acusado de obstruir as investigações, motivo pelo qual foi preso. Depois de solto, acabou se suicidando no shopping center mais movimentado de Florianópolis/SC.

Segundo a denúncia, em cerimônia de “entronização da foto do ex-reitor Cancellier na galeria de ex-reitores”, presidida por Ubaldo, manifestantes não identificados exibiram uma faixa contendo a fotografia da delegada, associada a dizeres que seriam atentatórios à sua honra funcional subjetiva ­– o conceito que o servidor público possui de si próprio.

Apesar de Ubaldo não ter confeccionado ou mandado confeccionar a faixa e nem ter sido o responsável por estendê-la durante a cerimônia (ouvido, esclareceu que a faixa foi estendida por manifestantes depois de iniciado o evento), no entendimento do Ministério Público Federal ele teria a obrigação de, na condição de autoridade de primeira hierarquia da administração universitária, retirar ou mandar retirar a faixa imediatamente. Ao omitir-se, teria atribuido para si a autoria do afronte à honra da delegada, cometendo o crime de injúria na modalidade comissiva por omissão.

Por sua vez, o chefe de gabinete Áureo teria consentido em ser fotografado e filmado em frente à faixa injuriosa, como cenário de sua manifestação, consciente e dolosamente, conferindo caráter oficial à injúria ali perpretada. Apenas isso.

Independentemente de todas as discussões que estão ocorrendo sobre o contexto institucional, político e simbólico dessa denúncia, pretende-se aqui tecer breves comentários sob o ponto de vista estritamente técnico da acusação.

Em primeiro lugar, deve-se observar que a tipificação da conduta não está correta. Explica-se. Os dizeres contidos na faixa eram os seguintes: “Agentes Públicos que praticaram Abuso de Poder contra a UFSC e que levou ao suicídio do Reitor”; “Pela apuração e punição dos envolvidos e reperação dos malfeitos!” Ao lado da foto da delegada e de outras autoridades, constava ainda a frase “As faces do Abuso de Poder”.

Como se observa, os dizeres constantes na faixa atribuíram à delegada e às outras autoridades fato determinado, qual seja, a hipotética prática de abuso de poder contra a UFSC, o que teria levado ao suicídio do reitor Cancellier. Ao lado dessa assertiva constava uma foto da delegada e também de outras autoridades, sendo que na outra extremidade constava a frase: “As faces do Abuso de Poder”. Isto é, atribuía-se àquelas autoridades o fato determinado de, supostamente, terem praticado abuso de poder na condução e deflagração da operação ouvidos moucos, o que teria levado ao suicídio do então reitor.

A atribuição de fatos minimamente determinados, que atentem contra a honra de alguém, pode configurar crime de calúnia ou de difamação, mas nunca de injúria, como constou na denúncia. Para quem não é do ramo do Direito, convém esclarecer que o delito de calúnia ocorre quando alguém atribui a um terceiro fato desenroso, o qual, além de ser desabonador, pode ser enquadrado como um crime (ex. afirmar que determinada pessoa furtou uma bicicleta em dada oportunidade). A difamação, por sua vez, ocorre com a atribuição de fato desenroso, mas que não chega a constituir crime (ex. dizer que tal pessoa traiu a esposa no dia anterior com uma colega do escritório). Por fim, no delito de injúria não há a atribuição de fatos desenrosos, mas sim de predicados pessoais depreciativos (ex. afirmar que tal pessoa é ladra, mentirosa ou ignorante).

Assim, no caso analisado, como não houve a atribuição de atributos negativos, mas sim de fatos desenrosos minimamente delimitados, as condutas atribuídas a Ubaldo e Áureo não poderiam ser enquadradas como injúria. É importante esclarecer, para essa análise, que o crime de calúnia e o de difamação, este último nos casos em que é praticado contra funcionário público, admitem a exceção da verdade; no crime de injúria ela é inadmissível. Exceção da verdade é um incidente processual concedido ao acusado de cometer o ataque contra a honra a fim de que possa provar que os fatos que imputou ao ofendido são verdadeiros.

Em segundo lugar, chama a atenção o modo como se tentou atribuir a autoria ao reitor e ao seu chefe de gabinete.

Quanto a Áureo, sob o ponto de vista formal, a denúncia é inepta. Não foi descrita a conduta supostamente delituosa, com todas as suas circunstâncias, como seria de rigor. Foi dito apenas que ele teria se deixado fotografar em frente à faixa. Porém, a denúncia não explica se a conduta de injuriar, núcleo do tipo penal, está sendo atribuída na forma comissiva ou comissiva por omissão. Não refere se a conduta teria sido praticada em co-autoria ou participação. Caso fosse enquadrada como participação (hipótese mais provável, já que não foi atribuída a ele a confecção da faixa ou sua exibição na cerimônia), a denúncia não diz em que momento ele teria aderido à conduta dos manifestantes. Além disso, não explica, direta ou indiretamente, em quais circunstâncias Áureo teria dado seu consentimento ao produtor do programa, ao repórter e ao cinegrafista sobre o local e o enquadramento que foi feito na filmagem, de modo que a faixa figurasse como cenário da entrevista que concedeu. Para que tivesse consentido dolosamente, em algum momento teria que ter se comunicado com o cinegrafista, pois num enquadramento mais aproximado a faixa não apareceria ao fundo. Áureo não tinha como presumir o zoom que estaria sendo utilizado pelo cinegrafista, sem que com ele tivesse se comunicado e entrado num ajuste de condutas para fazer aparecer a faixa ao fundo. Nada disso foi esclarecido na denúncia, como seria de rigor.

No que tange a Ubaldo, a denúncia foi mais clara, atribuindo a ele autoria na forma comissiva por omissão, ou seja, segundo o Ministério Público Federal ele teria o dever de evitar que a honra da delegada fosse atacada, mas, dolosamente, teria optado por se omitir, de modo que o intento dos manifestantes fosse plenamente alcançado.

Para que isso fosse possível, seria imprescindível a ocorrência dos seguintes fatores: os dizeres da faixa deveriam ser mesmo atentatórios à honra da delegada, com evidente excesso ao direito de crítica e à livre manifestação do pensamento; o reitor deveria ter consciência de que os manifestantes estariam agindo com dolo de atacar a honra da autoridade pública;  o reitor deveria ter a obrigação e a possibilidade de agir para evitar que os manifestantes atacassem a honra da delegada.

Somente as pessoas que possuem a condição de garantidores de bens jurídicos alheios é que podem ser punidos na modalidade comissiva por omissão. Assim, por exemplo, os pais são garantes dos seus filhos, tendo o dever de agir nos casos em que contra eles se apresente um risco às suas integridades físicas ou mesmo contra suas vidas. Nesses casos, os pais não podem se omitir, pois têm o dever legal de evitar a ocorrência do resultado. No mesmo sentido, os guarda-vidas são garantes dos banhistas, tendo a obrigação de agir em caso de afogamento. Salvo melhor juízo, o reitor não é garantidor da honra da delegada, não possuindo o dever de agir no caso de algum ato lesivo à sua reputação. A acusação tentou atribuir ele um dever de polícia administrativo pelo fato de ser a autoridade máxima da instituição. Porém, ele não tinha, por lei, obrigação de cuidado, proteção e vigilância da honra da delegada.

Note-se que a injúria praticada contra funcionário público somente se processa mediante a representação do ofendido. Em outras palavras, apenas pode ser investigado e processado se houver a autorização do ofendido. Tanto é assim que, embora houvesse a foto de outras autoridades públicas na faixa, elas não demonstraram interesse em que tais fatos fossem investigados e levados adiante. Por isso, a denúncia tem como objeto somente a pessoa da delegada, pois esta representou no sentido de que os fatos contra ela fossem apurados.

Nesse contexto, indaga-se: como o reitor, mesmo que tivesse o poder de polícia administrativo, poderia ter a convicção de que a delegada se sentiria ofendida? A injúria, tipificação contida na denúncia, atenta contra a honra subjetiva do ofendido. Os demais funcionários públicos que tiveram suas fotos impressas na mesma faixa não se sentiram ofendidos, pois não representaram para que houvesse a apuração e eventual responsabilização dos envolvidos. Num cenário como esse, o reitor não devia e nem podia agir contra os manifestantes, pois não tinha como deduizir se as autoridades se sentiriam ou não ofendidas. Somente uma representou para fins penais.

Ainda que não se entenda dessa maneira, cabe observar que a situação de o reitor ter ou não ter a obrigação de agir é bastante controvertida juridicamente. Nesse contexto, não há nada que demonstre, ainda, que o reitor tivesse plena ciência de seu papel de garante naquela oportunidade. O fato de desconhecer ou não ter compreendido o papel de garantidor que a acusação tenta atribuir a ele é suficiente para afastar a sua responsabilização penal. Não tendo ciência do seu dever de agir, em Direito Penal, não se admite sua punição. Trata-se de erro sobre a condição de garante.

Além disso, mesmo que se pudesse entender que ele seria o garante da honra da delegada e que ele tivesse plena ciência de sua obrigação de agir para evitar o resultado, o reitor teria que ter plena ciência de que estava realmente diante de um ataque à honra da delegada. Porém, o enquadramento da conduta dos manifestantes como ato atentatório à honra ou exercício do direito de crítica e livre manifestação do pensamento tabém é questão, no mínimo, controvertida.

Ainda, para ser responsabilizado penalmente, o reitor deveria ter aderido, em algum momento, à conduta dos manifestantes, com dolo de ofender a honra da delegada, ultrapassando os limites do direito de crítica e manifestação do pensamento, circunstância sobre a qual pesam dúvidas razoáveis.

Sob esse ponto de vista, as condutas atribuídas aos dois denunciados parece ser desprovida de antijuridicidade. Ainda que pudesse ser entendida como um ataque à honra, o ordenamento jurídico brasileiro permite a livre manifestação do pensamento e o exercício da crítica em face dos atos praticados por funcionários públicos. A responsabilização penal poderia ocorrer somente se houvesse o ânimo claro de ofender, de atentar contra a honra. No caso sob análise, parece que a resposta à indagação de se teria havido uma crítica permitida ou uma ofensa à honra consta na própria faixa, que transparece o objetivo dos manifestantes que a estenderam: “Pela apuração e punição dos envolvidos e reparação dos malfeitos!”

Por fim, merece ser ponderado o fato de se, além de possuir a obrigação de agir, o reitor poderia mesmo ter agido. Tratava-se de uma cerimônia honorífica, num contexto em que ao menos significativa parte da comunidade acadêmica estava bastante sensibilizada. Naquele momento seria possível exigir que o reitor tivesse acionado a segurança para remover os manifestantes? A resposta parece ser negativa. Lembre-se, ainda, que a postura do quadro diretivo da UFSC sempre foi a de não interferir em manifestações de qualquer ordem. Tanto é assim que durante o velório do reitor Cancellier alguns manifestantes gritavam palavras ofensivas contra o finado. Nem Ubaldo, nem Áureo e nenhuma outra autoridade acionou seguranças ou solicitou apoio policial para os remover, os quais foram demovidos, mediante apelo, por outros presentes e estudantes, sem a intervenção das autoridades da Universidade, o que parece ser bastante esclarecedor.

Assim, apenas com o entento de tentar contribuir sob um ponto de vista técnico às calorosas discussões que têm ocorrido nos últimos dias, entende-se que não houve crime de injúria, motivo pelo qual a denúncia não merece prosperar.

 

Robson Antonio Galvão da Silva

Mestre em Direito Econômico pela PUCPR.

Especialista em Direito Penal Econômico e da Empresa pela Universidad Castilla-La Mancha/ES.

Advogado.

Compartilhe no WhatsApp

NEWSLETTER

Cadastre-se para receber nosso informativo!